Microsoft word - 06 -- fé, epistemologia e virtude
P á g i n a | 46 A vontade de acreditar1 William James
[Nota] 1 Uma palestra apresentada aos Clubes Filosóficos das Universidades de Yale e Brown. Publicada em New World, Junho de 1896.
Na biografia recentemente publicada que Leslie Stephen escreveu sobre o seu irmão,
Fitzjames, há o relato de uma escola que este frequentou em criança. O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hábito de falar com os seus alunos nestes termos: «Gurney, qual é a diferença entre justificação e santificação? Stephen, prova a omnipotência de Deus!», etc. No seio do nosso livre-pensamento e indiferença de Harvard, tendemos a imaginar que aqui, no nosso bom velho colégio ortodoxo, a conversa continua mais ou menos nestes parâmetros; e para vos mostrar que em Harvard não perdemos todo o interesse nestes assuntos vitais, trouxe comigo esta noite algo de semelhante a um sermão acerca da justificação pela fé, para vo-lo ler — falo de um ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a adoptar uma atitude crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso intelecto meramente lógico poder não ter sido compelido. «A Vontade de Acreditar», consequentemente, é o título do meu artigo.
Há muito que defendo perante os meus próprios alunos a legitimidade da fé adoptada
voluntariamente; mas assim que ficam bem adentrados no espírito lógico, têm por norma recusar admitir a legitimidade filosófica da minha asserção, embora eles mesmos, na verda-de, estejam todos, pessoalmente e a cada momento, repletos de uma fé ou outra. Mantive-me sempre, contudo, tão profundamente convicto de que a minha posição está correcta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasião para esclarecer as minhas afirmações. Talvez as vossas mentes estejam mais abertas do que aquelas com que até agora tive de lidar. Serei o menos técnico possível, embora tenha de começar por estabelecer algumas distinções técni-cas que acabarão por nos ajudar.
Chamemos hipótese a qualquer coisa que se proponha como objecto da nossa crença;
e tal como os linguistas falam em metáforas vivas e mortas, diremos que uma hipótese qual-quer está viva ou morta.* Uma hipótese está viva se parece uma possibilidade real à pessoa a quem se apresenta. Se vos peço que acreditem no Mádi, esta noção não estabelece qualquer conexão vívida com a vossa natureza — escusa-se de todo em todo a pulsar com alguma cre-dibilidade. Como hipótese, está completamente morta. Para um árabe, contudo, (mesmo que não pertença aos seguidores do Mádi), esta hipótese encontra-se entre as possibilidades da mente: está viva. Isto mostra que a morbidez e a vividez numa hipótese não são propriedades
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intrínsecas, mas relações entre a hipótese e o pensador individual. São aferidas pela sua inclinação para agir. O máximo de vividez numa hipótese significa inclinação para agir irre-vogavelmente. Na prática, isto quer dizer crença; mas há uma tendência para acreditar onde quer que haja disposição para agir. [Nota] * James faz originalmente uma analogia com a electricidade, pois em inglês chama-se respectivamente live wire e dead wire a um fio com e sem electricidade, ou positivo e negati-vo. [N. do T.]
Em seguida, chamemos opção à decisão entre duas hipóteses. As opções podem ser
de tipos diferentes. Podem ser: 1) vivas ou mortas, 2) forçosas ou evitáveis, 3) momentosas ou triviais; e para o que nos interessa, podemos chamar genuína a uma opção quando per-tence ao tipo das opções que são forçosas, vivas e momentosas.
1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas. Se vos digo: «Sejam
teosofistas ou maometanos», trata-se provavelmente de uma opção morta, porque para vós nenhuma das hipóteses tem probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: «Sejam agnósticos ou cristãos», a história é outra: dada a vossa formação, cada hipótese apela, por muito pouco que seja, à vossa crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa umbrela», não vos ofe-
reço uma opção genuína, pois não é forçosa. Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se digo «Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram a minha teoria verdadeira ou a consideram falsa», a vossa opção é evitável. Podem permanecer indiferen-tes a mim, nem me amando nem me odiando, e podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria. Mas se digo «Ou aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-vos uma opção forçosa, pois não há lugar fora da alternativa. Todos os dilemas baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade de não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à minha expedição
ao Pólo Norte, a vossa opção seria momentosa; pois provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade semelhante, e o que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de imortalidade norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade única perde tão seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opção é trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está em causa é insignificante, ou quando a decisão é reversível se mais tar-de se mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida científica. Um químico con-sidera que uma hipótese está suficientemente viva para passar um ano a verificá-la: acre-dita nela até esse ponto. Mas se as suas experiências se mostram duplamente inconclusi-vas, perdoa-se a sua perda de tempo, não resultando daí qualquer mal vital.
A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem presentes estas distinções.
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A questão seguinte a considerar é a psicologia propriamente dita da opinião humana.
Quando olhamos para determinados factos, parece que a nossa natureza passional e volitiva está na raiz de todas as nossas convicções. Quando olhamos para outros factos, parece que essa natureza nada pode fazer depois do intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais estes últimos factos.
Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as nossas opiniões são modificáveis
segundo a nossa vontade? Poderá a nossa vontade ajudar ou estorvar o nosso intelecto na sua percepção da verdade? Será que podemos, querendo-o apenas, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um mito e que os seus retratos na McClure’s Magazine são de outra pessoa? Será que podemos, por qualquer esforço da vontade, ou por força de desejar que fosse verdade, acreditar que estamos de boa saúde quando estamos acamados a berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que a soma das duas notas de dólar que temos no bolso per-faz cem dólares? Podemos afirmar qualquer destas coisas, mas não temos de modo algum o poder de acreditar nelas; e é precisamente de tais coisas que se faz o tecido das verdades em que realmente acreditamos — questões de facto, imediatas ou remotas, como afirmou Hume, e relações entre ideias, que ou estão lá para nós ou não se as encararmos desse modo, e que não estando não podem ser colocadas lá por qualquer acção nossa.
Nos Pensamentos de Pascal há uma passagem célebre, conhecida na bibliografia
como a «aposta de Pascal». Aí, Pascal tenta compelir-nos ao cristianismo argumentando como se a nossa preocupação com a verdade se assemelhasse ao interesse que teríamos num jogo de azar. Traduzidas livremente, eis as suas palavras: têm ou de acreditar ou de não acreditar que Deus existe — o que escolhem? A vossa razão humana não pode decidir. Decor-re um jogo entre vocês e a natureza das coisas que no dia do juízo vai dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se apostassem tudo em caras, ou na exis-tência de Deus: ao ganhar nessas circunstâncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada perderiam sequer. Se nesta aposta houvesse uma infinidade de possibilidades e só uma favorável a Deus, deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora agindo desta maneira arrisquem seguramente uma perda finita, qualquer perda finita é razoável, até mesmo uma perda finita certa, se há sequer a possibilidade de um ganho infinito. Vão pois, tomar a água benta e mandar recitar a missa; a crença virá entorpecer-vos os escrúpulos — Cela vous fera croire et vous abêtira. Por que não? No fundo, o que têm a perder?
Provavelmente sentem que quando a fé religiosa se exprime assim, na linguagem da
mesa de jogo, está a lançar os seus últimos trunfos. Seguramente que a própria crença pes-soal que Pascal tem nas missas e na água benta teve uma origem muito diferente; e esta sua célebre página não é senão um argumento para outros, uma última tentativa desesperada de deitar mão a uma arma contra a dureza do coração do descrente. Sentimos que uma fé nas missas e na água benta adoptada voluntariamente depois de um cálculo tão mecânico carece-ria da alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos nós próprios no lugar da divindade, provavelmente teríamos um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à
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recompensa infinita. É evidente que a menos que haja uma tendência preexistente para acreditar nas missas e na água benta, a opção que Pascal oferece à vontade não é uma opção viva. Certamente que nenhum turco, por sua própria conta, veria com bons olhos as missas e a água benta; e mesmo para nós, protestantes, estes meios de salvação parecem impossibili-dades de tal maneira ultrapassadas que a lógica de Pascal, invocada especificamente a favor destes meios, nos deixa indiferentes. De igual modo podia o Mádi escrever-nos, afirmando: «Sou o Esperado a quem Deus, no seu esplendor, criou. Serão infinitamente felizes se me reconhecerem; de contrário serão afastados da luz do Sol. Ponderem então o vosso ganho infinito no caso de eu ser genuíno, contra o vosso sacrifício finito no caso de não o ser!» A sua lógica seria a de Pascal; mas seria vão usá-la em nós, pois a hipótese que nos oferece está morta. Não há em nós qualquer tendência para agir com base nela, em grau algum.
Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de um certo ponto de vis-
ta, simplesmente tolo. De outro ponto de vista, é pior do que tolo: é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos como foi erguido; quantos milhares de vidas morais humanas desinteressadas jazem só nos seus alicerces; quanta paciência e adia-mento, quanto abafar das preferências, quanta submissão às leis gélidas do facto exterior, talhada na própria pedra e na argamassa; como se mantém de pé, absolutamente impessoal na sua vasta majestade — como parece então enfatuado e desprezível cada pequeno senti-mentalista que vem soprar as suas espirais de fumo voluntárias, fingindo decidir as coisas a partir do seu sonho privado! Será que nos podemos sentir surpresos, se os que foram criados na escola austera e viril da ciência tenham vontade de cuspir tal subjectivismo das suas bocas? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência se opõe completamente a que se tolere tal coisa; de modo que é perfeitamente natural que quem contraiu a febre científica passe ao extremo oposto e por vezes escreva como se o intelecto incorruptivelmen-te honesto devesse preferir em absoluto a amargura e a inaceitabilidade ao coração inebria-do.
«Fortifica-me a alma saber Que, embora eu pereça, a verdade é o que é»,
«O meu único consolo está em observar que, por muito má que a nossa posteridade venha a ser, enquanto se ativerem à regra simples de não fingir acreditar naquilo para o qual não dis-põem de quaisquer razões, por lhes poder ser vantajoso fingi-lo [a palavra «fingir» é segura-mente redundante aqui], não terão chegado ao patamar mais baixo da imoralidade.»
E Clifford, o delicioso enfant terrible, escreve:
«Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e inquestionadas, para consolo e prazer privado do crente […] quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da sua crença com o fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a dada altura
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não recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que jamais se poderá remover […] Mas se a crença foi aceite com base em indícios insuficientes [ainda que a crença seja ver-dadeira, como Clifford explica na mesma página], é um prazer roubado […] É pecaminoso, porque é roubado em desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia, que pode em pouco tempo tomar conta do nosso próprio corpo e então propagar-se para o resto da cidade […] É sempre incor-recto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.»
Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz Clifford, com
uma paixão demasiado vocal. O livre-arbítrio e o mero desejo, no que diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No entanto, se alguém pressupõe de imediato que a penetra-ção intelectual sagaz é o que resta depois de o desejo, a vontade e a preferência sentimental terem partido, ou que as nossas opiniões passam a ser decididas pela razão pura, opor-se-ia directamente à realidade dos factos.
São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é incapaz de trazer
de novo à vida. Mas o que as fez morrer para nós é, na sua maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa natureza volitiva. Quando digo «natureza volitiva», não me refiro apenas a volições deliberadas que podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora não conseguimos escapar — refiro-me a todos os factores de crença, como o medo e a espe-rança, o preconceito e a paixão, a imitação e o partidarismo, a pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco a acreditar sem saber ao certo como nem por-quê. O Sr. Balfour dá o nome de «autoridade» a todas estas influências, nascidas do clima intelectual, que tornam as hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas. Aqui nesta sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação da energia, na democracia e no progresso necessário, no cristianismo protestante e no dever de lutar pela «doutrina do imortal Monroe», tudo por nenhuma razão digna do nome. A claridade interior com que dis-cernimos estes assuntos não é maior, e talvez até seja menor, do que aquela que qualquer descrente nos mesmos pode ter. A sua inconvencionalidade teria provavelmente algumas razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas para nós, não é a ideia sagaz e sim o pres-tígio das opiniões o que as faz soltar uma centelha e acender os nossos paióis adormecidos da fé. A nossa razão satisfaz-se cabalmente, novecentas e noventa e nove em cada mil de nós, se encontrar alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém criticar a nossa cre-dulidade. A nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões mais importantes, é isto sobretudo o que acontece. A nossa crença na própria verdade, por exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as nossas mentes foram feitas uma para a outra — o que é senão uma afirmação apaixonada de desejo, em que o nosso sistema social nos apoia? Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que as nossas experiências, estudos e discussões têm de nos colocar numa posição cada vez melhor em direcção à verdade; e nesta linha concordamos resolver as
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nossas vidas pensantes. Mas se um céptico pirrónico nos perguntar como podemos saber tudo isto, poderá a nossa lógica dar-lhe uma resposta? Não! Certamente que não. Trata-se apenas de uma volição contra outra — nós dispostos a avançar para uma vida com base numa confiança ou pressuposto que ele, por sua parte, não se preocupa em fazer.2 [Nota] 2 Compare-se com a admirável página 310 na obra de S. H. Hodgson, Time and Spa-ce, Londres, 1865.
Por regra rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as quais não temos
uso. As emoções cósmicas de Clifford não vêem qualquer utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os bispos porque no seu esquema de vida o sacerdócio não tem qualquer utilidade. Newman, pelo contrário, passa para o catolicismo romano, e encontra todo o género de boas razões para aí permanecer, porque um sistema sacerdotal é para ele uma necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os «cientistas» que chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada «telepatia»? Porque pensam que, como um importante biólogo já falecido me disse uma vez, mesmo se tal coisa fosse verdade, os cientistas deviam unir-se para a manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade da natureza e todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não podem levar a cabo as suas actividades investigativas. Mas se a este mesmo homem se mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com a telepatia, talvez não só examinasse os indícios como até os considerasse suficientemente bons. Esta mesma lei que os lógicos nos impõem — se me permitem chamar «lógicos» a todos os que nesta questão excluiriam a nossa natureza volitiva — em nada se baseia senão no seu próprio desejo natural de excluir todos os elemen-tos nos quais, na sua qualidade profissional de lógicos, não conseguem ver qualquer utilida-de.
É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as nossas convicções.
Há tendências passionais e volições que ocorrem antes da crença, outras que surgem depois, e só as últimas entram em cena demasiado tarde; e não entram demasiado tarde quando o trabalho passional prévio já as vinha preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter força, parece assim um tira-teimas como os outros, e é a última estocada necessária para tornar completa a nossa fé nas missas e na água benta. É evidente que este estado de coisas nada tem de simples; a mera penetração intelectual sagaz e a lógica, seja o que for que pos-sam fazer idealmente, não são as únicas coisas que de facto produzem as nossas crenças.
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado, é pergun-
tar se é ou não simplesmente repreensível e patológico, ou se, pelo contrário, temos ou não de o tratar como um elemento normal ao tomar decisões. A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não
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Observar-se-á que, para o que interessa a esta discussão, estamos em terreno «dog-
mático» — terreno, quero dizer, que deixa completamente de parte o cepticismo filosófico sistemático. O postulado de que há a verdade e que o destino das nossas mentes é alcançá-la, estamos deliberadamente resolvidos a aceitar, embora o céptico não o faça. Afastamo-nos da sua companhia, portanto, absolutamente, daqui para a frente. Mas a fé, segundo a qual a verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser defendida de duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo absolutista de acreditar na verdade. Os absolu-tistas neste assunto afirmam que não só conseguimos chegar ao conhecimento da verdade, como podemos saber quando alcançámos esse conhecimento; ao passo que os empiristas pensam que embora o possamos alcançar, não podemos saber infalivelmente quando o fize-mos. Saber é uma coisa e saber com certeza que sabemos é outra. Pode-se defender que a primeira é possível sem a segunda; é por isto que os empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja céptico no sentido filosófico usual do termo, exibem nas suas vidas graus de dogmatismo muito diferentes.
Se olharmos para a história das opiniões, vemos que a tendência empirista prevaleceu
em grande medida na ciência, ao passo que na filosofia a tendência absolutista tem feito tudo à sua maneira. O género característico de felicidade, de facto, que as filosofias produzem, tem consistido sobretudo na convicção, sentida por cada escola ou sistema sucessivos, que através dessa escola ou sistema se alcançara a certeza definitiva. «As outras filosofias são colecções de opiniões, na sua maioria falsas; a minha filosofia dá-nos um ponto fixo para sempre» — quem não reconhece nisto a tónica de todo o sistema digno desse nome? Um sis-tema, para sequer ser um sistema, tem de se apresentar como um sistema fechado, reversível neste ou naquele detalhe, talvez, mas nunca nas suas características essenciais!
A ortodoxia escolástica, a que sempre temos de recorrer quando desejamos encontrar
uma afirmação perfeitamente clara, elaborou belissimamente esta convicção absolutista na chamada doutrina dos «indícios objectivos». Se, por exemplo, sou incapaz de duvidar que existo agora perante vós, que dois são menos do que três, ou que se todos os homens são mortais, então também sou mortal, é porque estas coisas iluminam o meu intelecto irresisti-velmente. A justificação última destes indícios objectivos que certas proposições têm é a adequatio intellectus nostri cum re. A certeza que traz envolve uma aptitudinemad extor-quendum certum assensum por parte da verdade visada e, por parte do sujeito, uma quietem in cognitione, assim que o objecto é mentalmente apreendido, não deixando lugar a qualquer possibilidade de dúvida; e em todo este processo nada opera senão a entitas ipsa do objecto e
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a entitas ipsa da mente. A nós, desleixados pensadores modernos, desagrada-nos a conversa em latim — na verdade, desagrada-nos conversar com termos bem definidos de todo em todo; mas no fundo o nosso próprio estado de espírito é muito semelhante a isto sempre que nos deixamos ir acriticamente: vocês acreditam nos indícios objectivos, e eu também. De algumas coisas sentimos que estamos certos: sabemos, e sabemos que sabemos. Algo ressoa em nós, um sino que bate as doze badaladas, quando os ponteiros do nosso relógio mental deram a volta ao mostrador e se encontram ao meio-dia. Os maiores empiristas entre nós só o são quando reflectem: abandonados aos seus instintos, dogmatizam como papas infalíveis. Quando os Clifford nos dizem como é pecaminoso ser cristão com base em tão «insuficientes indícios», a insuficiência é na verdade a última coisa que têm em mente. Para eles, os indí-cios são absolutamente suficientes, só que em sentido contrário. Acreditam tão completa-mente numa ordem anticristã do universo que não há qualquer opção viva: a hipótese do cristianismo está morta à partida.
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que devemos fazer,
na qualidade de estudantes de filosofia, acerca deste facto? Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como uma fraqueza da nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos adoptar
enquanto homens de reflexão. Os indícios objectivos e a certeza são sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde, neste planeta iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu próprio sou, portanto, um completo empirista no que diz respeito à minha teoria do conhecimento humano. Vivo, certamente, de acordo com a fé prática de que temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experiência, pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio que a atitude de adoptar qualquer uma delas — é-me de todo indiferente qual — como se jamais pudesse ser reinterpretável ou cor-rigível, é um tremendo equívoco, e penso que toda a história da filosofia me irá corroborar. Não há senão uma verdade indefectivelmente certa, que o próprio cepticismo pirrónico deixa de pé — a verdade de que o fenómeno presente da consciência existe. Isso, contudo, é o pon-to de partida nu do conhecimento, a mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As diversas filosofias são meras tentativas de exprimir o que esta matéria realmente é. E se vamos às nossas bibliotecas quanto desacordo descobrimos! Onde se encontra uma resposta indubitavelmente verdadeira? Além de proposições abstractas comparativas (tais como «dois mais dois é igual a quatro»), proposições que em si mesmas nada nos dizem acerca da reali-dade concreta, não encontramos qualquer proposição que alguém tenha considerado eviden-temente certa ao ponto de nunca a terem declarado uma falsidade, ou pelo menos cuja ver-dade nunca foi seriamente questionada por outrem. Transcender os axiomas da geometria, não a brincar mas a sério, por parte de alguns dos nossos contemporâneos (como Zöllner e
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Charles H. Hinton), e a rejeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos, são exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdade foi alguma vez objecto de
consenso. Alguns tornam o critério externo ao momento da percepção, colocando-o na reve-lação, no consensus gentium, nos instintos do coração ou na experiência sistematizada do género humano. Outros transformam o momento perceptivo em teste de si próprio — Des-cartes, por exemplo, com as suas ideias claras e distintas garantidas pela veracidade de Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas formas do juízo sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser verificado pelos sentidos; a posse de unidade orgânica completa ou auto-relação, realizada quando uma coisa é o seu próprio outro — são cânones que foram, por sua vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não estão, triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff, assinalan-do o ideal infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar que determinadas verdades agora o possuem é simplesmente afirmar que, quando as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu favor são objectivos e de contrário não. Mas na prática, a nossa convicção de que os indícios por que nos guiamos são da variedade genuinamente objectiva, é apenas mais uma opinião subjectiva que se acrescenta às outras. Pois já se reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a certeza absoluta para uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O mundo é inteiramente racional — a sua existência é um facto bru-to último; há um Deus pessoal — um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo físico extramental imediatamente conhecido — a mente apenas pode conhecer as suas próprias ideias; existe um imperativo moral — a obrigação é apenas o resultado dos desejos; há em todos um princípio espiritual permanente — há apenas estados mentais inconstantes; há uma cadeia interminável de causas — há uma primeira causa absoluta; uma necessidade eterna — uma liberdade; um propósito — nenhum propósito; um Uno primordial — um Múl-tiplo primordial; uma continuidade universal — uma descontinuidade essencial nas coisas; uma infinidade — nenhuma infinidade. Há isto — há aquilo; nada há, na verdade, que alguém não tenha considerado absolutamente verdadeiro, ao passo que o seu vizinho o con-siderou absolutamente falso; e nenhum absolutista entre eles parece ter alguma vez conside-rado que o problema pode ter sido sempre essencial e que o intelecto, mesmo com a verdade directamente ao seu alcance, pode não ter qualquer sinal infalível para saber se é ou não ver-dade. Quando, de facto, recordamos que a mais flagrante aplicação prática, na vida, da dou-trina da certeza objectiva foi o trabalho consciencioso do Santo Ofício da Inquisição, senti-mo-nos menos tentados a respeitar uma doutrina do que alguma vez nos sentimos.
Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de empiristas, abandona-
mos a doutrina da certeza objectiva, não deixamos por isso de procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda depositamos a nossa fé na sua existência e ainda acreditamos que conseguimos progredir cada vez mais na sua direcção, continuando sistematicamente a acu-mular experiências e a pensar sobre elas. A grande diferença entre nós e o escolástico está no lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema está nos princípios, na origem, no ter-minus a quo do seu pensamento; para nós a força está no resultado, no desfecho, no termi-
P á g i n a | 55 nus ad quem. O decisivo não é de onde vem, mas onde conduz. Não importa a um empirista qual a procedência de uma hipótese que se lhe depara: pode tê-la obtido por meios justos ou ilícitos; pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo acaso; mas se a direcção total do pensamento continuar a confirmá-lo, é isso o que significa dizer que é verdade.
Um aspecto ainda, pequeno mas importante, e concluímos os nossos preliminares.
Há duas maneiras de encarar o nosso dever, no que diz respeito à opinião — maneiras com-pletamente diferentes, e no entanto maneiras a cuja diferença a teoria do conhecimento parece ter dado até agora muito pouca atenção. Temos de saber a verdade; temos de evitar o erro — estes são os nossos primeiros e grandiosos mandamentos, como pretendentes ao conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um mesmo mandamento, são duas leis distintas. Embora possa de facto acontecer que acreditar na verdade A tenha a conse-quência lateral de nos livrarmos de acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de acreditarmos necessariamente em A apenas por não acreditarmos em B. Podemos, ao evitar B, acabar acreditando noutras falsidades, C ou D, tão más como B; ou podemos evitar B tão-pouco acreditando seja no que for, nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas leis material-
mente diferentes; e ao escolher entre elas podemos acabar por dar uma coloração diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos encarar a caça à verdade como primordial e a fuga ao erro como secundária; ou podemos, por outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais imperativo e deixar a verdade correr os seus riscos. Clifford, na instrutiva passagem que citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não acreditem em coisa alguma, diz-nos, mante-nham para sempre a mente em suspenso, em vez de, cingindo-se a indícios insuficientes, incorrer no terrível risco de acreditar numa mentira. Vocês, por outro lado, podem pensar que o risco de cair em erro é algo de somenos importância por comparação à bênção do conhecimento genuíno, e aceitar serem enganados muitas vezes na vossa investigação em vez de adiar indefinidamente a hipótese de acertar na verdade. Por mim considero impossível acompanhar Clifford. Temos de recordar que estes sentimentos sobre o nosso dever perante a verdade ou o erro são, em todo o caso, apenas expressões da nossa vida passional. Biologi-camente consideradas, as nossas mentes são tão aptas a destilar a falsidade como a veracida-de, e quem afirma «Antes passar toda a vida sem crenças do que acreditar numa mentira!» apenas mostra o seu preponderante horror privado de se tornar um palerma. Pode ser crítico relativamente a muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece servilmente. Não pode imaginar que alguém questione a sua força vinculadora. Da minha parte, tenho tam-bém horror a ser intrujado; mas acredito que neste mundo podem acontecer coisas piores a um homem além de ser intrujado: pelo que a exortação de Clifford tem uma ressonância completamente fantástica nos meus ouvidos. É como um general que diz os seus soldados que mais vale evitar eternamente a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se conse-gue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Os nossos erros não são com certeza
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coisas tão horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos tão certos de incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável do que este nervosismo exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o mais apropriado ao filó-sofo empirista.
E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa questão.
Afirmei, e agora repito, que não só vemos que, na realidade, a nossa natureza passional influencia as nossas opiniões, como que há opções entre opiniões, em que se tem de encarar esta influência como um factor determinante, tanto inevitável como legítimo, da nossa esco-lha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar o perigo, inter-
pretando-me então de modo não caridoso. Tiveram de facto de admitir como necessários dois primeiros passos da paixão — temos de pensar de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a verdade; mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais, como provavelmente depreenderão, é de agora em diante não dar mais passos passio-nais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre que a opção
entre perder a verdade e ganhá-la não é momentosa, podemos deitar fora a hipótese de obter a verdade, e, em qualquer circunstância, salvaguardar-nos de qualquer hipótese de acredi-tar em falsidades, não decidindo sequer antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas questões científicas, isto é quase sempre assim; e mesmo nos assuntos humanos em geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que faça uma falsa crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que nenhuma crença sequer. Os tribunais, de facto, têm de decidir com base nos melhores indícios que se pode obter no momento, porque o dever de um juiz é tanto fazer a lei como averiguá-la, e (como me disse em tempos um juiz de grande erudição) poucos são os casos em que vale a pena perder muito tempo: o importante é deci-di-los com base em qualquer princípio aceitável, e passar adiante. Mas na nossa relação com a natureza objectiva somos obviamente registadores e não produtores da verdade; e decisões tomadas apenas em função de decidir prontamente e passar à próxima tarefa seriam comple-tamente deslocadas. Em toda a amplitude da natureza física os factos são o que são, inde-pendentemente de nós, e raramente há a propósito deles uma urgência tal que tenha de se enfrentar os riscos de ser enganado por acreditar numa teoria prematura. As questões aqui são sempre opções triviais, as hipóteses dificilmente estão vivas (em todo o caso, não estão vivas para nós espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou na falsidade raramente é forçosa. A atitude do equilíbrio céptico é portanto absolutamente sensata, para que evite-mos os erros. Que diferença realmente fará para a maior parte de nós se temos ou não uma teoria dos raios Röntgen, se acreditamos ou não na substância mental, se temos ou não con-vicções acerca da causalidade dos nossos estados conscientes? É indiferente. Tais opções não
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são forçosas para nós. Em todos os aspectos, é melhor não as fazer, continuando todavia a pesar as razões pro et contra de modo indiferente.
Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à descoberta, tal
indiferença não é tão fortemente recomendável, e a ciência estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse fora de cena os desejos inflamados dos indivíduos em ver confir-mada a sua própria fé. Veja-se por exemplo a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem. Por outro lado, se querem um perfeito bronco a investigar, têm, afinal, de escolher o homem que não tem qualquer interesse nos resultados: é o inepto autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador mais sensível, é sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da questão é equilibrado por um nervosismo igualmente intenso, para que não se deixe iludir.3 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma técnica normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-se tão profundamente pelo método que se pode mesmo afirmar que parou de se preocupar com a verdade por si mesma, de todo em todo. É apenas a verdade enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades podia assumir uma forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A ciência podia repetir com Clifford que tal verdade seria roubada em desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas, todavia, são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses raisons», como afirma Pascal, «que la raison ne connaît point»; e por muito que o árbitro, o intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as simples regras do jogo, os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar estão normalmen-te, cada um deles, apaixonados pela sua própria «hipótese viva» de estimação. Concordemos, todavia, que sempre que não haja uma opção forçosa, o intelecto friamente judicativo, des-provido de qualquer hipótese de estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo o caso, deve ser o nosso ideal. [Nota]3 Compare-se com o ensaio de Wilfrid Ward, «The Wish to Believe», no seu Witness to the Unseen, McMillan & Co., 1893.
Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas nas nossas
questões especulativas, e será que podemos (como homens que talvez estejam pelo menos tão interessados em obter positivamente a verdade como em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente até que tenham chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável que a verdade se ajustasse assim tão bem às nossas necessidades e poderes. Na grande hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga e o xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade, devíamos encará-los com desconfiança científica se o fizessem.
As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja solução não
pode esperar por uma prova tangível. Uma questão moral não é sobre o que tangivelmente
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existe, mas sobre o que é bom, ou seria bom se existisse. A ciência pode dizer-nos o que exis-te; mas para comparar os valores, tanto daquilo que existe como do que não existe, temos de consultar não a ciência mas aquilo a que Pascal chama o nosso «coração». A própria ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita averiguação dos factos e a correcção das crenças falsas são os bens supremos para o homem. Desafie-se a afirmação e a ciência só pode repeti-la de modo oracular, ou então prová-la, mostrando que tal confirmação e correc-ção trazem ao homem todo o género de outros bens que o coração do homem por sua vez declara. A questão de ter crenças morais, de todo em todo, ou de não as ter, é decidida pela nossa vontade. Serão as nossas preferências morais verdadeiras ou falsas, ou serão apenas fenómenos biológicos peculiares, tornando as coisas boas ou más para nós, mas indiferentes em si? Como pode o vosso puro intelecto decidir? Se o vosso coração não quer um mundo de realidade moral, a vossa cabeça seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo mefistofélico, na verdade, satisfará os instintos lúdicos da cabeça muito melhor do que qual-quer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em idade estudantil) são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem para eles qualquer vida pungente, e na sua presença altiva o moralista ardente sente-se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência de conhecimento está do lado daqueles, a naiveté e a credulidade do lado deste. Contudo, no seu coração mudo, este agarra-se à convicção de que não é um palerma e que há um domínio em que (como afirma Emerson) toda a perspicácia e superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou provar através da lógica do que o cepticismo intelectual. Quando sustentamos que há ver-dade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e decidimos ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O céptico, com toda a sua natureza, adopta a atitude da dúvi-da: mas qual de nós é o mais sensato, só a Omnisciência sabe.
Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para uma certa classe de ques-
tões de facto, questões respeitantes a relações pessoais, estados mentais entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? — por exemplo. Se gostam ou não, dependerá, em inúmeras circunstâncias, de chegar a acordo convosco, da minha disposição para pressupor que devem gostar de mim e de vos mostrar alguma confiança e expectativa. O que vos faz simpatizar comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o farão. Mas se me mantenho à distância e recuso mover-me um só centímetro antes de ter indícios objectivos, antes de terem feito algo apropriado, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum meum, aposto que a vossa simpatia nunca se manifestará. Quantos corações de mulher se deixam conquistar pela mera insistência confiante de um homem em como têm de o amar! Não acei-tará a hipótese de que não o podem fazer. O desejo por um certo tipo de verdade provoca aqui a existência dessa verdade especial; e assim é em inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções, favores, nomeações, senão o homem em cuja vida se vê que estas coisas desempenham o papel de hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica outras coisas por cau-sa delas antes de as ter à vista e se arrisca de antemão por elas? A sua fé age sobre os poderes acima de si como uma reivindicação, e cria a sua própria verificação.
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Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande, é o que é por-
que cada membro cumpre o seu dever confiante de que os outros cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado desejado pela cooperação de muitas pessoas independentes, a sua existência factual é uma pura consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente envolvidas têm umas nas outras. Um governo, um exército, um sistema comercial, um navio, um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob esta condição, sem a qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se procura alcançar. Um comboio inteiro de passageiros (que individualmente são bastante corajosos) será saqueado por um punhado de salteadores, simplesmente porque os últimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro receia que ao encetar um movimento de resistência, será baleado antes que mais alguém o ajude. Se acreditássemos que todos os passageiros se levantariam ao mesmo tempo connos-co, cada um levantar-se-ia individualmente, e jamais se tentaria assaltar comboios. Há por-tanto casos em que um facto não se pode sequer dar a menos que exista uma fé preliminar no seu advento. E onde a fé num facto pode ajudar a criar esse facto, uma lógica segundo a qual a fé que se adianta aos indícios científicos é o «tipo mais baixo de imoralidade» em que um ser pensante pode incorrer, seria uma lógica doente. No entanto, tal é a lógica pela qual os nossos absolutistas científicos pretendem regular as nossas vidas!
Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada no desejo
é certamente algo legítimo e possivelmente indispensável.
Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a ver com as
grandes questões cósmicas, como a questão da fé religiosa. Passemos então a essas. As reli-giões diferem tanto nas suas características acidentais que ao discutir a questão religiosa temos de a tornar muito genérica e lata. O que entendemos então agora por «hipótese reli-giosa»? A ciência diz que as coisas são; a moralidade diz que umas coisas são melhores do que outras; e a religião diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as mais eternas, as
que se sobrepõem, as coisas que no universo lançam a última pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A perfeição é eterna» — esta expressão de Charles Secrétan parece uma boa maneira de colocar esta primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não pode ainda ser cientificamente verificada, de todo em todo.
A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor se acreditarmos
Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no caso de a hipó-tese religiosa em ambas as suas ramificações ser realmente verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida essa possibilidade. Para discutirmos a questão, de todo em todo, esta tem de envolver uma opção viva. Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não pode ser verdadeira segundo qualquer possibilidade viva, não precisam de ir mais longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».) Procedendo assim, vemos, em pri-
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meiro lugar, que a religião se oferece como uma opção momentosa. Supostamente ganha-mos, agora mesmo, ao acreditar, e perdemos ao não acreditar, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião é uma opção forçosa, no que diz respeito a esse bem. Não podemos evitar a questão permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque, embora assim evitemos realmente o erro no caso de a religião ser contrária à verdade, perdemos o bem, no caso de ser verdadeira, tão seguramente como se de facto escolhêssemos não acre-ditar. É como se um homem hesitasse indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por não ter a certeza absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não estará a privar-se dessa possibilidade angélica particular tão decisivamente como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto, não consiste em evitar a opção; é a opção por um certo tipo particular de risco. Antes arriscar não acertar na verdade do que a hipó-tese de cair em erro — esta é a posição exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se activamente tanto quanto o crente; está a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese religiosa, tal como um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os outros cavalos. Pregar-nos o cepticismo como um dever até se encontrar «indícios suficientes» a favor da religião, equiva-le, portanto, a dizer-nos que, na presença da hipótese religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao nosso medo de que esta seja errónea do que ceder à nossa esperança de que pode ser verdadeira. Não se trata do intelecto contra todas as paixões, portanto; trata-se apenas do intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E por que meio, em boa verdade, se garante a suprema sabedoria desta paixão? Logro por logro, que prova há de que o logro através da esperança é pior do que o logro através do medo? Por mim, não vejo prova alguma; e sim-plesmente recuso obedecer à ordem do cientista para imitar o seu tipo de opção, num caso em que o meu próprio interesse é suficientemente importante para me dar o direito de esco-lher a minha própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e os indícios a seu favor ain-da insuficientes, não desejo, deixando que extingam as chamas da minha natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este assunto), abdicar da minha única oportunidade na vida de entrar para o lado vencedor — dependendo essa oportunidade, evidentemente, da minha disposição para correr o risco de agir como se a minha necessidade passional de compreen-der religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que, mesmo para
nós, que discutimos o assunto, a religião é uma hipótese viva que pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a religião surge-nos de outra maneira ainda, que torna ainda mais ilógico um veto à nossa fé activa. O aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nos-sas religiões como algo que tem uma forma pessoal. Quando se é religioso, o universo não é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e qualquer relação que pode ser possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por exemplo, embora num sentido sejamos parcelas passivas do universo, noutro sentido mostramos uma curiosa autonomia, como se fôssemos pequenos centros activos autónomos. Sentimos, além disso, que é como se o apelo que sen-timos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade activa, como se os indícios pudes-sem ficar para sempre escondidos de nós a menos que percorramos metade do caminho na sua direcção. Tomando numa ilustração trivial: tal como um homem que numa companhia
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de cavalheiros não tomasse quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por cada concessão, e não acreditasse na palavra de quem quer que fosse sem provas, privar-se-ia, com tal rudeza, de qualquer gratificação social a que um espírito mais confiante teria acesso — também aqui, quem se fecha numa atitude lógica resmungona e tenta fazer os deuses arrancar o seu reco-nhecimento contra a sua vontade, não o obtendo de outro modo, pode perder para sempre a sua única oportunidade de travar conhecimento com os deuses. Este sentimento, que nos é imposto sem que saibamos de onde vem, de que ao acreditar obstinadamente que há deuses (embora não o fazer fosse tão fácil tanto para a nossa lógica como para a nossa vida) presta-mos ao universo o mais profundo serviço de que somos capazes, parece parte da essência viva da hipótese religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas as suas partes, incluindo esta, então o puro intelectualismo, com o seu veto a que tomemos iniciativas voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia logicamente alguma participação da nossa empatia natural. Eu, portanto, por mim, não consigo ver-me aceitar as regras agnósticas para a procura da verdade, ou concordar voluntariamente em manter a minha natureza volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta razão simples: uma regra de pensamento que me impediria em absoluto de reconhecer certos tipos de verdade se esses tipos de verdade estiverem real-mente lá, seria uma regra irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a dizer sobre a lógica formal da situação, independentemente dos tipos de verdade que possam materialmente existir.
Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste experiência
faz-me recear que alguns de vocês ainda possam inibir-se de afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o direito de acreditar por nossa conta e risco em qualquer hipótese que esteja suficientemente viva para ser uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se isto for assim, é porque se afastaram completamente do ponto de vista lógico abstrac-to e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma hipótese religiosa particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de «acreditar no que se quer» a alguma superstição patente; e a fé em que pensam é a fé definida pelo aluno quando disse: «A fé é quando acre-ditamos numa coisa que sabemos não ser verdadeira». Não posso senão repetir que isto é um equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode abranger opções vivas que o intelecto do indivíduo não pode resolver por si; e as opções vivas nunca parecem absurdas a quem as tem em consideração. Quando olho para a questão religiosa tal como se coloca realmente a homens concretos, e quando penso em todas as possibilidades que envolve, tanto prática como teoricamente, esta ordem de pôr um travão ao nosso coração, instintos e coragem, e esperar — agindo evidentemente entretanto mais ou menos como se a religião não fosse verdadeira4 — até ao dia do juízo, ou até ao dia em que o nosso intelecto e sentidos, traba-lhando conjuntamente, possam ter adquirido indícios suficientes — esta ordem, digo, parece-me o ídolo mais bizarro que se fabricou na caverna filosófica. Fôssemos absolutistas escolás-ticos, talvez tivéssemos uma desculpa maior. Se tivéssemos um intelecto infalível, com as suas certezas objectivas, podíamo-nos sentir desleais perante um órgão de conhecimento tão perfeito ao não confiar exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra libertadora. Mas
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se somos empiristas, se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos perante a verdade, parece que pregar tão solenemente que temos o dever de aguardar pelo toque do sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, se quisermos — espero que não pensem que o nego — mas se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o caso agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos outros, nem trocar pala-vras agressivas. Devemos, pelo contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade mental de cada um: só então realizaremos a república intelectual, só então teremos aquele espírito de tolerância interior sem o qual toda a tolerância exterior se torna oca, e que é a glória do empirismo; só então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas especulativas como nas práticas. [Nota]4 Como a crença se mede pela acção, quem nos proíbe de acreditar na verdade da reli-gião, proíbe-nos também necessariamente de agir como deveríamos se acreditássemos na sua verdade. Toda a defesa da fé religiosa depende da acção. Se a acção exigida ou inspirada pela hipótese religiosa não for de modo algum diferente da que é ditada pela hipótese natu-ralista, a fé religiosa é uma pura superfluidade, que é melhor podar, e a controvérsia acerca da sua legitimidade é uma frivolidade, indigna de mentes sérias. Eu próprio acredito, obvia-mente, que a hipótese religiosa dá ao mundo uma expressão que determina especificamente as nossas reacções, e as torna em grande parte diferentes daquilo que podiam ser num esquema de crença puramente naturalista.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que termine citan-
«O que pensas de ti mesmo? O que pensas do mundo? […] São questões com que
todos têm de lidar como lhes parecer melhor. São charadas esfíngicas e, de uma maneira ou doutra, temos de lidar com elas […] Em todo o comércio importante da vida, temos de dar um salto no escuro […] Se decidimos deixar as adivinhas sem resposta, é uma escolha. Se hesita-mos na nossa resposta, também isso é uma escolha; mas seja qual for a escolha que fazemos, fazemo-la por nossa conta e risco. Se um homem escolhe voltar completamente as costas a Deus e ao futuro, ninguém o pode impedir. Ninguém pode mostrar para lá da dúvida razoável que está enganado. Se um homem pensa o contrário, e se age tal como pensa, não vejo como alguém pode provar que ele está enganado. Cada qual tem de agir como acha melhor, e se está errado tanto pior para ele. Estamos num desfiladeiro, no meio de um turbilhão de neve e um nevoeiro denso, através do qual entrevemos de vez em quando caminhos que podem ser enganadores. Se ficamos quietos, morremos congelados. Se escolhemos a estrada errada, somos feitos em pedaços. Não sabemos com certeza se há ou não uma estrada certa. O que temos de fazer? “Ser fortes e corajosos”. Ajam pelo melhor, esperem o melhor, aceitem o que vier […] Se a morte a tudo põe fim, não há maneira melhor de ir ao seu encontro.»5
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[Nota] 5 Liberty, Equality, Fraternity, p. 353, 2.ª edição. Londres, 1874.
Gender matters V A N I T A N A Y A K M U K H E R J E E ‘The empowerment and autonomy of women and the improvement of their political, social, economic and health status is a highly important end in itself. In addition, it is essential for the achievement of sustainable development. The full participation and partnership of both women and men is required in productive and reproductive life,
An die H-Ärzte/innen in Bayern und Sachsen Inhaltsverzeichnis 1. Aktualisierung der „Erläuterungen zum Verletzungsartenverzeichnis“ 2. Verordnung von Schmerzgel mit dem Wirkstoff Diclofenac 3. Örtliche Zuständigkeit des Bereichs Rehabilitation und Leistung der BG Bau (Tiefbau), Bezirksverwaltung München 4. Änderung der Postanschrift der Unfallkasse des Bund