Rituais do discurso crítico: betriz sarlo e diamela eltit
Rituais do discurso crítico: Beatriz Sarlo e Diamela Eltit
Este ensaio busca descrever, de modo contrastivo, alguns
procedimentos que caracterizam o ritualismo textual dos discursos crítico eliterário. Tomando como corpus de análise alguns textos das obrasInstantáneas, de Beatriz Sarlo, e Emergencias, de Diamela Eltit, pretendetambém apontar riscos e perspectivas de uma crítica híbrida, ou seja, queincorpora, em seus próprios rituais, procedimentos literários. Simultânea emetacriticamente, este ensaio se oferece como um exercício conflituoso devozes que, provocando-se umas às outras, trazem, para a cena escritural,efeitos imagéticos, narrativos, de concentração e esgarçamento do fluxo dosentido. Aqui, uma voz, adentrando territórios de silêncio, tenta ser mais deuma.
Neste livro que manuseio, é exatamente a operação tátil, o
movimento de folhear, que me interessa. Toco a página como forma deprovar a mim mesmo que ela não se resume a uma superfície inerte sobre aqual se depositaram marcas gráficas exibicionistas, orgulhosas por fazerbrilhar sua condição de palavra.
Eis o ritual que adoto: minha mão aberta desliza, cobre um pouco da
cintilância da tinta, deixa-se conduzir pela rugosidade do papel. Overdadeiro livro se abre para mim. Cada folha que passo é mais compacta epesada que a anterior. São blocos sólidos, de uma espessura queprogressivamente desafia meu esforço sobre-humano de deslocá-los.
Até que, sem qualquer aviso prévio, as folhas de novo se adelgaçam,
vão se tornando lâminas finas, finíssimas diante de meus dedos agoragigantescos, inábeis para manipular matéria tão delicada. É o impalpável desi que o livro me revela. Constato, então, que não há nenhum verdadeiro
livro. Da passagem das folhas que se dissolvem, oferecendo-se como quasemeras abstrações, apenas no puro movimento encontro um resíduo desentido.
Adensamentos e rarefações: eis o ritual com que sou brindado.
Segundo uma perspectiva bastante abrangente, um ritual é um
conjunto ordenado e recorrente de procedimentos. Ordenação e recorrênciagarantem ao conjunto sua previsibilidade. O segundo elemento, todavia,também inclui um componente de atualização. Apesar de previsível, a açãoritualística é em geral vivida como se fosse essencial e única, porque éprecisamente durante sua ocorrência que se observa a renovação davalidade do próprio ritual.
Toda instituição qualquer organização humana que se entende
como tal em decorrência da especificação de objetivos e regras para atingi-los adota rituais. Vale ressaltar que estes não são apenas séries de regras,mas modos como devem ser seguidas. Isso significa que se prevê umamargem, maior ou menor, de flexibilidade, que reforça o viés atualizadorpresente no ritual.
Pode-se pensar que todo discurso segue rituais, em especial porque
se vincula a uma instituição ou a várias, com níveis diversos deformalização. No caso dos discursos veiculados através da escrita, devemser obrigatoriamente mencionados, como redes institucionais basilares, omeio acadêmico, a imprensa e o mercado editorial. Não é inadequadosupor, pois, que há todo um ritualismo associado ao que se costumadenominar como “discurso crítico”. Conceituar de maneira rigorosa taldiscurso não é tarefa fácil, o que não impede que, quando se analisa suamanifestação sob a forma de texto, se esbocem alguns procedimentosbastante característicos, sobretudo se contrastados àqueles constitutivos deoutro ritualismo textual: o do discurso literário.
No auditório amplo e bem iluminado da faculdade, todas as poltronas
estavam ocupadas. A palestra teria como tema a obra de um escritorrespeitado, e o próprio palestrante que, naquele preciso momento, entrou
no recinto gozava de prestígio no meio acadêmico. Ao microfone, umprofessor anfitrião apresentou, com efusividade moderada, o convidado,que, sob aplausos também moderados, subiu ao palco, sentou-se, colocousobre a mesa a pasta, abriu-a, retirou um maço de folhas, pigarreoudiscretamente e, por alguns instantes enquanto não cessava porcompleto o rumorejar , manteve seus olhos pairando sobre a platéia,antes de mergulhá-los nas palavras e nos silêncios que a leitura faria ecoar.
Entre os procedimentos configuradores do ritualismo textual do
discurso crítico, há três bastante evidentes. O primeiro deles é aautorização, que engloba todos os recursos que dizem respeito à elaboraçãode um sistema de referências, manifesto no jogo das citações ou no uso dedeterminados quadros terminológicos e conceituais. É possível se pensar notexto crítico como uma arena onde se demonstram, explicitamente ou não,filiações e recusas. Há um esforço acentuado de se conceder ou negarautoridade às vozes convocadas. Na verdade, na própria convocatória está aprincipal manifestação da autoridade do crítico. Trata-se de um sistema demão dupla: a voz do crítico se respalda na reputação das vozes queseleciona, em geral previamente consolidada ou em fase de consolidação. Ao selecioná-las, contribui para reforçar tal reputação, passando a integraro corpo de textos que a endossa.
A voz crítica se autoriza ao retransmitir a autoridade de outras vozes.
Assim, desejando ou não, utilizando ou não o expediente de anunciar suafalibilidade, a voz crítica é sempre forte, no sentido de que se alimenta daforça de outras vozes. Obviamente, também pode revelar-se aí umafraqueza, pois há convenções que detalham o modo aceitável de sesubordinar, à unidade da voz convocadora, a diversidade das vozesconvocadas.
No caso do texto literário, não costuma haver interesse nesse sistema.
As vozes do texto se apresentam e se processam segundo um regime deficcionalidade. Há, sem dúvida, a questão da autoria, mas esta é umainstância cujo parâmetro de autoridade se situa fora do texto e não no seucerne. No discurso literário, mesmo se se considera que há uma voz geralque aglutina a multiplicidade de vozes, não se deve esquecer que ela seencontra sob o signo da simulação, ou seja, é uma voz, por definição,hipotética. É este signo que permite que as vozes literárias assumamfeições a princípio problemáticas para a voz crítica: podem ser incoerentes,
instáveis, falíveis, contraditórias, reflexivamente autodestrutivas. Nessaperspectiva, a voz literária é sempre fraca, já que não se sustenta em nadaalém de um pacto ambíguo, que pressupõe a suspensão dos critérioshabituais que definem o grau de confiabilidade de uma voz.
Aproximo o ouvido ao livro. No rumor das páginas, identifico vozes
que, se observo com mais atenção, se reúnem sob a regência de uma únicavoz, que define o fio nítido de um canto. Na janela de cada página,debruço-me junto ao regente, que é também quem distribui e ordena asjanelas, indica a moldura correta para cada paisagem.
Contudo, se observo com ainda mais atenção, expandem-se os
marcos das janelas, as molduras se transformam em paisagem, dissipa-se oespectro do regente, e o fio do canto se embaraça, desfia-se em sonsimprecisos nos quais agora só reconheço o mero sopro do papel.
Um segundo procedimento típico do ritualismo textual do discurso
crítico é a categorização, que indica a necessidade de se elaborar, oucolocar em operação, categorias, seja em termos do uso de modelostaxonômicos que classificam dados de um certo corpus, seja em termos dautilização de conceitos, entendidos, bem amplamente, como formas depropor linhas de força gerais ao pensamento. Na base do gestocategorizador está, assim, o desejo de generalização, através dorecenseamento de semelhanças. Tal recenseamento é perpassado peloesforço analítico, que, para atuar na separação de partes distinguíveis,inclui, sem dúvida, o horizonte das diferenças. A distribuição de elementosem grupos e subgrupos conjuga, portanto, o duplo mecanismo degeneralizar a partir da determinação de especificidades, e vice-versa. Essafunção distributiva abre espaço, de modo privilegiado, para o recurso àcomparatividade, exatamente o processo de se estabelecer paralelos,contrastes e cruzamentos entre categorias.
No ritualismo do texto literário, nada se categoriza, já que o interesse
recai na particularidade. Mesmo que se constate, nesse tipo de texto, umeventual valor simbólico considerado como séries de convenções que se
difundiram significativamente em determinado contexto, que atingiram, porconseguinte, um grau de generalidade , não se pode esquecer que há umaênfase irremovível na encenação de tempos, espaços, ações e/ou formas delinguagem únicos e insubstituíveis, radicalmente atrelados à especificidadede sua contingência. O que se costuma chamar de identificaçãoproporcionada pela literatura é uma relação de natureza imprecisa, já que ageneralidade se dá aí como um efeito, que vigora apenas quando um leitor,também ímpar, reconhece, num vastíssimo universo de particularidades,algumas que julga semelhantes às suas. A generalização perfeita, aquelaque almeja ser, a rigor, atemporal, inespacial, imune à espessura dalinguagem, não encontra terreno fértil nos rituais do discurso literário,assumidamente focalizado nas idiossincrasias da sua própria matéria-prima.
No ar que preenchia a cúpula do auditório, reverberava a voz grave e
pausada do palestrante. Tão pausada que parecia ser possível sentir aporosidade dos longos silêncios. Durante alguns deles, mantinha seus olhosfixos no papel, como se, em função de um perfeccionismo obstinado,desenhasse mentalmente os movimentos da boca que em seguida forjariamo som ideal dos vocábulos. Em outras pausas, os olhos se mexiam,percorriam o espaço de um lado a outro, colhendo dados no rosto de cadaouvinte atentíssimo. A palestra sequer mencionava a obra que deveria estarsob análise. Talvez nem fosse mesmo uma palestra. Mas o poder daquelastessituras verbais era hipnótico. Palavras, silêncios, palavras, palavras,silêncios, palavras ouviam-se.
Na qualidade comum de discursos, crítica e literatura são
notadamente associativas. Trata-se, no entanto, de regimes deassociatividade muito distintos. No discurso literário, associa-se porconsecutividade, sem que necessariamente se determinem diferenças denível entre os elementos concatenados. No discurso crítico, àconsecutividade se vincula uma relação de conseqüência. Tal vínculoindica um terceiro procedimento do ritualismo do discurso crítico, que é a
conclusividade, ou seja, a meta de se produzir inferências válidas a partirdo que é exposto.
Por menos pretensioso, um texto crítico não se contenta em ser
meramente expositivo, como se apenas veiculasse um quadro dereferências categorizadas. Há sempre a exigência, mais ou menosimpositiva, mais ou menos espectral, de que embutido no vetor analíticoesteja atuando um vetor de síntese. Enfim, por mais vago e provisório,demanda-se que algo se conclua.
Todo texto crítico é afirmativo, no sentido de que não coloca em
xeque, a não ser como artimanha retórica, a validade daquilo que enuncia. Está aí uma interface irrecusável com o discurso científico. Uma conclusão,que é uma conseqüência mediada, se dá quando, na associação depremissas, acredita-se ter atingido um estágio mais avançado oudesenvolvido. Pressupõe-se, assim, que o processo de validação ocorra emníveis, e que seja crescente.
No ritualismo literário, suspende-se a conseqüência, ou, pelo menos,
esta jamais se sobrepõe à consecutividade. Em contraponto àconclusividade do ritual crítico, tributária de algum valor generalizável, doestabelecimento de parâmetros de previsão, há, pois, a narratividade doritual literário, resistindo a esse valor através da ênfase no particular e noimprevisível. À afirmatividade do ritual crítico, da qual deriva umapossível negatividade, se contrapõe a sugestividade do ritual literário, queafirma de modo impreciso, ostenta uma capacidade difusa degeneralização. Enquanto a crítica é obrigada a dizer sim, a literatura se dáao luxo de só dizer talvez.
Bem na beirada da escrivaninha, o livro. Agachado, os olhos rentes
ao bloco compacto, observo. Vista tão de perto, cada folha perfilada é umlivro, as linhas são volumes, feitos de linhas, também volumes. Tentoidentificar a forma deste corpo. Nave? Talvez. Máquina? Talvez prisma,edifício, horizonte, estrada. Escolhas mutantes, que já não são minhas: otomo tragou minha visão. As membranas oculares, muito finas, agora nãopassam de páginas esvoaçantes.
Se se considera válida a caracterização dos procedimentos
apresentados e, sobretudo, se são de fato demarcáveis as fronteiras entre osrituais dos discursos crítico e literário, depara-se com um problema teóricofascinante, expresso em questões como: O que ocorre, em termos deeficiência discursiva, quando procedimentos típicos de um ritual sãoempregados no outro? Quais são os mecanismos através dos quais osimbricamentos podem se dar? Em que níveis há riscos de se colocar emxeque a própria identidade de cada discurso?
Uma alternativa para se tentar responder perguntas dessa natureza é
recorrer a obras que exercitam tais aproximações. De forma maisespecífica, interessa aqui a abordagem de projetos escriturais que, apesar dereconhecidamente críticos, incorporam procedimentos literários. É o caso,sem dúvida, do trabalho desenvolvido pela crítica argentina Beatriz Sarlo,em especial nos livros Escenas de la vida posmoderna Instantáneas La máquina cultural Diamela Eltit, o já consolidado perfil de romancista abre espaço com aedição em livro, no ano 2000, de sua produção ensaística até entãodispersa para que se avalie, no conjunto, seu perfil de crítica. Com ointuito de circunscrever com nitidez o campo de leitura, propõe-se que oexame se detenha em alguns textos de Instantáneas, de Sarlo, e em doistextos de Emergencias, de Eltit.
A proposta de Sarlo já se explicita no prefácio: “El título de estos
ensayos, Instantáneas, tiene dos sentidos y ambos me parecen adecuados. Por una parte, son brevísimas escenas captadas en tiempo presente, casipersiguiendo su transcurrir para encerrarlo en unas pocas páginas. Por laotra, son registros ‘fotográficos’ de experiencias en la culturacontemporánea, experiencias directas, volátiles y, en algunos casos,esbozadas ante mi propia mirada”. De fato, os textos do livro sãocompostos de cenas breves, como as que relatam diferentes situações emque se manifesta a presença real ou simulada da morte, em “El gusto de losgustos”, ou detalhes da rotina de alguns personagens urbanos, em “Losocupantes de la noche”. A pronunciada narratividade também é a marcaprincipal de “Escenarios latinos en Nueva York”, de Eltit, relato minuciosode uma visita a uma sessão de “santería” no Bronx. No texto “Las batallasdel Coronel Robles”, também de Eltit, a narratividade é mais difusa, maspode ser percebida no processo gradual de se revelarem os dados relativosa uma foto do coronel do título, na verdade uma mulher mexicana.
Em decorrência do viés narrativo, é importante observar três tipos de
ênfase. Uma primeira é a delimitação espaço-temporal. Tanto as cenasportenhas de Sarlo quanto o relato nova-iorquino de Eltit ocorrem nopresente, tempo assinalado com muita freqüência. A estratégia deixa claro
o desejo de uma focalização sempre rente aos eventos, narrados quadro aquadro.
Uma segunda ênfase é a escolha de um prisma pessoal, através de
um sujeito enunciador que figura a si mesmo no texto. “Mi ventana”, notexto “El gusto de los gustos”, é o espaço que se desvela para que possamvir à tona peculiaridades de quaisquer pontos de vista. Em Sarlo,desempenha notável papel a heterogeneidade dos registros, como em “Lasdos naciones”, em que se alternam a escrita (do diário de um famosoantropólogo), a fala (de uma mulher anônima), e o olhar (da próprianarradora). Nos cenários latinos de Eltit, há personagens a quem se dá voz,e que atuam como desdobramentos dialógicos do andamento em primeirapessoa do relato.
Finalmente, ganham expressivo destaque as sensações constitutivas
das cenas ou por elas evocadas. Daí decorre a insistência em se resgatar ofulgor, em geral obliterado, do corpo. Sarlo, referindo-se aos ocupantesnoturnos da cidade, pergunta: “¿Qué saben de Buenos Aires? ¿Qué dicende Buenos Aires con sus cuerpos ocupadores, sus cuerpos inquilinos, suscuerpos que a veces parecen invisibles, como si fueran fardos, o bolsas, omontones de basura?”. Eltit, propondo uma dialética entre corpo natural epolítico, afirma: “Cuerpos arcaicos que pueden aflorar únicamente comoescenas nocturnas de un sueño épico y liberador donde el anhelo deinsurrección puede punzar el otro cuerpo, que aunque yazga desnudo yaestá irreversiblemente cubierto del discurso que vistió de una vez y parasiempre la primera piel”.
O corpo, contudo, não surge apenas como tópica, mas também como
instrumento que, no plano da textualidade, procura explorar o poder desugestão sensorial da linguagem, através, por exemplo, da listagemparatática que abre o texto de Eltit sobre a foto da mulher-coronel, ou daproposta de Sarlo, no texto “Aprendiendo a escuchar”, de se desenvolverum pensamento por tons.
Constata-se que as três ênfases representam, em síntese, a busca de
um efeito de singularização espaço-temporal, de ponto de vista, demodos de percepção , efeito no qual a particularidade se revela comomola propulsora da possibilidade de narrar.
O palestrante, em certo momento, fechou os olhos e manteve-os
assim, desejando sustentar a pausa, que se alongaria em desmesura, atédeixar de ser pausa e tornar-se o próprio tempo.
Deve-se ressaltar que, quando não se fica restrito ao plano mais
imediato de estruturação dos textos mencionados de Sarlo e Eltit, apura-sealgo essencial: permeando a acentuada narratividade, manifestam-setentativas de extrair, daquilo que se narra, alguma conseqüência. Se aparticularidade é a mola propulsora, a propulsão indica um rumo: o degeneralidades que se esboçam.
Em Sarlo, na heterogeneidade a princípio irredutível das cenas, vai-
se efetuando o alinhamento de elementos recorrentes, que acabam por sedistribuir em categorias mais ou menos vagas. É o caso de distinções comonoite/dia, em “Los ocupantes de la noche”, nós/eles, em “Casi comoanimales”, e condomínios/favelas, em “Las dos naciones”. No fluxo de talímpeto categorizador, certas noções chegam a ganhar força de conceitos,mesmo que não se explicitem como tal. Isso se dá, no texto “Los ocupantesde la noche”, com o termo inquilinato, na verdade um amplo operadorconceitual que descreve as relações que codificam e regulam o uso instáveldos espaços públicos urbanos.
Em Eltit, a operação conceitualizadora é mais explícita. No relato
nova-iorquino, a categoria do “latino” é fundamental, e conduz osmovimentos da mirada comparativista, que busca reconhecerfamiliaridades e detectar diferenças culturais. Já na leitura da foto docoronel travestido, o evidente tom teórico, se por um lado é reforçado peloemprego de um conceito aglutinador (o de “corpo teórico”), por outro serelativiza tanto pela proliferação do próprio conceito (que se desdobra em“corpo natural”, “corpo arcaico”, “corpo político”, “corpo moral”, “corposimbólico”) quanto pela utilização de aspas, cujo resultado é marcadamentesuspensivo no que tange ao grau de precisão dos termos.
Se a tendência categorizadora/conceitualizadora já demonstra o
compromisso com a generalização, este também pode ser constatado noequacionamento das vozes textuais. Em Sarlo, apesar da adoção de pontosde vista múltiplos, não há como deixar de observar que praticamente todosos textos se iniciam com uma epígrafe, espécie de mote que atua como eixoordenador do desenvolvimento das cenas. Como se fosse inviável resistir àunificação da diversidade, vozes heterogêneas se alinham pela ação de uma
voz única que, não por acaso, é signo de validação no campo intelectual,como demonstra a lista que inclui, entre outros, Karl Marx, MikhailBakhtin, Merleau-Ponty, Vladimir Nabokov, Jacques Derrida, Goethe,Walter Benjamin, Roland Barthes, Lewis Carroll. A solitária e irônicaexceção é o fragmento de um manual de vídeo-game, abrindo o texto“Games en CDROM: mitologías tridimensionales”.
Também generalizador é o emprego de um “nós” que chega a
incorporar a perspectiva de um suposto senso comum. Como no texto “Casicomo animales”, à visão de especialistas em sociologia se contrapõe aquiloque se “repite con bastante frecuencia”.
Em Eltit, não há, no corpus em questão, referências explícitas, mas a
voz enunciadora assume a autoridade crítica, seja demonstrando oprocessamento prévio de determinados discursos teóricos, como os queutilizam, no debate sobre os latinos em Nova York, os tópicosestrangeiridade, diferença, exclusão, códigos sociais, seja propondo agestação de conceitos próprios, como na discussão sobre o travestismo docoronel mexicano.
Verifica-se que as duas autoras empregam regimes de autorização
distintos. Em Sarlo, há uma autoridade explícita representada por nomes deintelectuais, mas esta se distende em meio às outras vozes do texto. EmEltit, apesar de não haver explicitação, a autoridade se concentra na vozenunciadora. Em ambos os casos, há um efeito de unificação, mas enquantoem Sarlo este compete com a descentralização das vozes, em Eltit éreforçado pela centralização, o que torna mais nítida a miradageneralizante.
O silêncio, absoluto mas pulsante, parecia ser capaz de fundir, num
arranjo multifacetado, o palestrante, os ouvintes, o auditório, a faculdade, acidade, o mundo.
Cabe indagar em que medida também são diferentes os sistemas de
conclusividade adotados por Sarlo e Eltit, e quais os riscos e perspectivas
que estes trazem em seu bojo. No prefácio de Instantáneas, a autora afirma:“Me moví con la idea de que el viaje por lo cotidiano (por los depósitos debanalidad y de resistencia a la banalidad que están entre nosotros), podíaser narrado y criticado al mismo tiempo.” Crucial, aqui, é a questão queindaga o estatuto desse “ao mesmo tempo” capaz de interligar narrativa ecrítica. Sem dúvida, trata-se de averiguar em que medida são aproximáveisa particularidade heterogênea e o horizonte de generalidadehomogeneizadora. Se se postula uma “democracia narrativa”, como Sarloem “Los olvidados”, é preciso definir quais são suas condições. A partirdas derivas também se produzem mapas, como se sugere em “Losocupantes de la noche”.
“Narrar e criticar ao mesmo tempo” pode significar que se recupere
certa afirmatividade da narrativa através do flerte com um tom de parábola. Esse é um risco que correm muitos textos de Sarlo que, ao final, parecemesboçar uma imagem-síntese passível de ser lida, mesmo que ironicamente,como uma espécie de moral. Trata-se, assim, do perigo de se estarrevalorizando uma concepção mítica de literatura, cuja função seria,essencialmente, pedagógica.
“Narrar e criticar ao mesmo tempo” também pode acarretar a
recíproca atenuação da força dos discursos crítico e literário. Se se lêem ostextos de Eltit como a veiculação do “espíritu de la crónica”, como umaescrita “eminentemente periodística”, como propõe o prefaciador do livro,pode-se vir a tomá-los como relatos desprovidos da contundênciaconclusiva do texto crítico, liberto de sua vocação generalizadora, de seucompromisso com critérios de validação, e como relatos tambémdestituídos do caráter provocador da literatura, com os procedimentosliterários cumprindo mero papel de ornamentos sedutores, facilitações dalegibilidade.
No “narrar e criticar ao mesmo tempo” também estão anunciadas
perspectivas promissoras. Uma delas é a que indica a riqueza depossibilidades de uma exploração sistemática de categorias textuais e depensamento que hibridizam a generalidade do conceito com aparticularidade da imagem. No corpus sob análise, dois caminhosobservados são a progressiva atribuição de poder conceitual a certas noçõesa princípio apenas metafóricas, como já apontado em Sarlo, e,inversamente, a suspensão dos limites dos conceitos, com a conseqüenteampliação de sua mobilidade e sugestividade, como em Eltit.
Uma segunda perspectiva deriva da constatação de que os textos são
compostos de maneira especial, como que mimetizando, na própriaestrutura, o movimento das cenas e idéias veiculadas. O texto “El gusto delos gustos”, sobre a presença opressiva mas obliterada da morte no
cotidiano, se articula como uma seqüência de flashes, demonstrando aidéia-chave de que “la muerte aparece y desaparece, así, en cuestión desegundos”. Em “Los ocupantes de la noche”, para abordar a questão daprovisoriedade dos espaços, que são ocupados e desocupados de um modosimultaneamente natural e estranho, a voz narradora adota uma dicção cujaesperada perplexidade dissimula-se em neutralidade, como se estivessepresente mas invisível.
Em “Las batallas del Coronel Robles”, de Eltit, o conflito entre corpo
e vestimenta, identidade e valor cultural, sexo e gênero se duplica na tensãoentre a fotografia propriamente dita, reproduzida como um elementointegrante do texto, e o discurso que vai sendo elaborado sobre ela. Foto etexto são contraprovas recíprocas: confirmam-se, desmentem-se,provocam-se.
Tanto em Sarlo quanto em Eltit, o que há de mais interessante nessa
cuidadosa atenção aos modos possíveis de se compor textos é exatamente ofato de se fazer vir à tona a plasticidade do discurso, ou seja, suamaleabilidade construtiva. A planejada experimentação de tal plasticidade,muito comum nos rituais do discurso literário, pode abrir caminhosinusitados para o discurso crítico, por desvelar sua dimensão ritualística,com freqüência ocultada, e a esta propor atualizações que escapem à meraortodoxia.
O que sabe um corpo? o livro indaga.
O palestrante subitamente arrastou a poltrona, levantou-se, foi até a
beirada do palco, desceu os degraus, dirigiu-se à porta do auditório e saiu,abandonando sobre a mesa os papéis, e sobre o rosto de todos a máscara daperplexidade.
Pode-se afirmar, no que tange à capacidade de produzir
conhecimento, que o campo da hipótese é comum tanto ao discurso críticoquanto ao literário. Há, contudo, uma diferença nada desprezível. Noprimeiro caso, a hipótese existe para ser comprovada, ou seja, para deixarde ser hipótese. No segundo, almeja preservar-se como tal. Issocorresponde a dizer que, na crítica, as suposições têm caráter instrumental,enquanto na literatura são constitutivas do próprio pacto discursivo.
No que diz respeito aos ritualismos, porém, a diferença se acirra. A
tendência do discurso crítico é pressupor e afirmar a validade de seusrituais, justificando-os. Não costuma haver, pois, significativas margensconjecturais relativamente ao modo como é elaborado. Já o discursoliterário costuma explorar tais margens, elegendo a própria incerteza formalcomo fonte inspiradora para a experimentação de arranjos discursivosinusuais.
O palestrante agora apenas um homem de passo determinado
atravessou o imenso saguão, seguiu em direção à alameda. Em sua cabeça,soavam palavras. Eram as palavras que ele mesmo havia proferido, masmoduladas em diferentes vozes, cujo número equivalia, com exatidão, aode seus ouvintes.
É válido concluir que, ao se apropriar de procedimentos ritualísticos
da literatura, a crítica esteja sendo motivada pelo desejo, ou necessidade, deexplicitar seu caráter hipotético também no plano de configuração de seupróprio discurso. Ou seja: aceita o desafio de ser uma crítica especulativatambém em termos formais. Isso significa, para o texto crítico, investir noque os rituais possuem de abertura, colocando em questão seu viéstendencialmente conservador. Independentemente de riscos epotencialidades, o exercício pressupõe um gesto de reflexão do discursosobre si mesmo. A crítica abre os ouvidos para os sussurros, os ruídos, afalastrice e os silenciamentos de seus rituais.
Pergunto: O que um livro é capaz de ouvir?Ambiguamente, o livro responde: Um livro ouve-se.
O homem, que continuava caminhando, esboçou um sorriso. Sem
que ninguém percebesse, ele atingiu sua meta: capturou, através de canaissecretos, as várias nuances de como foi ouvido. A tarde de outono estavaagradável. O sorriso se abriu. O homem já dispunha dos dados paraelaborar a mais sensacional das teorias: a teoria da escuta.
1 Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil. Doutor em Literatura Comparada.
2 SARLO, Beatriz. Escenas de la vida posmoderna; intelectuales, arte y videocultura en la
Argentina. Buenos Aires: Ariel, 1994.
3 SARLO, Beatriz. Instantáneas; medios, ciudad y costumbres en el fin de siglo. Buenos Aires:
4 SARLO, Beatriz. La máquina cultural; maestras, traductores y vanguardistas. Buenos Aires:
5 ELTIT, Diamela. Emergencias; escritos sobre literatura, arte y política. Santiago:Ariel/Planeta, 2000.
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