Acesso a medicamentos: Indonésia abre importante precedente a ser seguido, mas o Brasil caminha em outra direção.
Começa a vir a público uma medida adotada na Indonésia, o quarto país mais populoso do planeta, para viabilizar a ampliação do acesso ao tratamento para Aids e Hepatite B no país. Em setembro, o presidente Dr. H. Susilo Bambang Yudhoyono assinou um decreto autorizando o uso governamental das patentes de sete medicamentos para HIV/AIDS e Hepatite B. Caso essa medida seja de fato implementada, o governo poderá adquirir versões mais baratas desses medicamentos para usar em seus programas de saúde. Deste modo, o governo da Indonésia impede que os altos preços decorrentes de monopólios gerados pelas patentes de empresas multinacionais como Gilead, Bristol, Boeringher, Glaxo, Merck e Abbott afetem a capacidade do governo de cumprir suas obrigações para com o direito à saúde. O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip) apoia a iniciativa do governo da Indonésia e congratula os ativistas que atuam no país sensibilizando o governo a respeito da importância da garantia do acesso a medicamentos, em especial os ativistas do International Treatment and Preparedness Coalition (ITPC) Indonesia, que tem advogado pelo licenciamento compulsório de medicamentos patenteados de segunda linha de HIV/Aids, alguns dos quais chegam a custar U$ 2,000 por paciente/ano. Segundo dados da Unicef, estima-se que 310,000 pessoas vivam com HIV na Indonésia. Dentre as 70,000 pessoas que necessitam de tratamento antirretroviral, apenas 23,000 tem acesso atualmente. Além disso, o país tem uma das mais altas taxas de crescimento da epidemia em toda a Ásia. Boa parte dos recursos financeiros para o combate à AIDS no país vem de fontes internacionais, como o Fundo Global de Combates à Aids, Tuberculose e Malária. No entanto, a redução das contribuições internacionais, resultante do recuo de doadores, pode ameaçar a oferta de tratamento. O governo da Indonésia tem investido mais recursos na resposta nacional à epidemia, mas sem a adoção de medidas que reduzam os custos do tratamento, como o uso governamental, torna-se inviável para o governo promover o acesso para todos aqueles que necessitam. Esse é um exemplo claro de que os países podem e devem fazer uso de mecanismos legais para que necessidades de saúde pública prevaleçam sobre direitos comerciais. Esses mecanismos estão previstos no Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio (OMC), sendo conhecidos pelo termo “flexibilidades” ou “medidas de proteção”, e sua utilização é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) para promoção da saúde pública. O uso governamental é um desses mecanismos e já havia sido usado na Indonésia em 2004 e em 2007 (para os medicamentos anti-aids efavirenz, lamivudina e nevirapina). O decreto presidencial de 2012 adiciona mais seis medicamentos a essa lista: abacavir, didanosina,
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tenofovir, e as combinações: lopinavir + ritonavir, tenofovir + emtricitabina e tenofovir + emtricitabina + efavirenz. A medida adotada pela Indonésia representa um dos casos mais amplos de utilização de uma medida de defesa da saúde pública desde o estabelecimento do Acordo TRIPS da OMC em 1995. Esse é um precedente fundamental para outros países, ainda mais na atual conjuntura, onde uma nova escalada de preços de medicamentos anti-AIDS ameaça a sustentabilidade da resposta à epidemia em várias partes do mundo. Sem se valer de “flexibilidades”, como o uso governamental de patentes, é provável que governos não consigam arcar com os custos de programas de acesso a tratamento para suas populações. A medida adotada na Indonésia vem se somar a uma retomada global do uso de flexibilidades. No inicio deste ano, a Índia emitiu sua primeira licença compulsória e possibilitou uma redução de 97% do preço do medicamento anti-cancer sorafenibe. Também este ano, a China fez emendas em sua lei de propriedade intelectual de modo a permitir que o governo emita licenças compulsórias para que produtores locais de genéricos possam fabricar medicamentos ainda sob patente em casos de emergência ou interesse público. O Brasil, que sempre foi tido como referência na defesa do uso de flexibilidades, está hoje na contramão desta retomada e aposta cada vez menos no uso de flexibilidades como modelo capaz de assegurar a sustentabilidade dos programas de acesso universal. Ao invés disso, o país aposta na negociação voluntária de transferência de tecnologia com titulares de patentes como modelo que poderia aliar garantia do acesso e desenvolvimento industrial. Essa mudança de direção política é preocupante, na medida em que faltam informações sobre os contratos de transferência de tecnologia e sobre como eles podem assegurar uma dinâmica de gastos que não ameace o acesso universal. Apesar da falta de transparência, há indicações de que o Brasil estaria pagando um preço muito alto pela transferência tecnológica e ainda de que a tecnologia seria transferida de maneira gradual e lenta. Além disso, a estratégia adotada pelo Ministério da Saúde, que visa reduzir o déficit comercial do setor via incentivos à industria nacional, poderia ser aliada com o uso estratégico das flexibilidades tão defendidas pelo país em âmbito internacional, como licença compulsória, quando possível, mas essa não parece ser a vontade política predominante. Além disso, vale ressaltar que, embora com regulações distintas, a legislação da maior parte dos países industrializados e em desenvolvimento – EUA, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Canadá, Austrália, China, Indonésia, Índia, Malásia, para citar apenas alguns, incluem os dispositivos de uso governamental das patentes. A legislação brasileira de patentes, a Lei 9.279 de 14 de maio de 1996, por sua vez, contempla salvaguardas importantes como a licença compulsória, mas é omissa quanto à salvaguarda representada
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pelo uso governamental. Esperamos que o precedente aberto pela Indonésia também sirva para engendrar uma discussão sobre reforma da legislação brasileira sobre propriedade industrial de modo a incluir mecanismos como o uso governamental das patentes e outras medidas que poderão ser utilizadas para alavancar políticas públicas e satisfazer importantes demandas sociais na esfera da saúde pública, e também da cultura, da educação, da segurança alimentar, entre outras, quando a proteção a propriedade intelectual representar obstáculos para sua implementação. O GTPI realizou um estudo sobre a previsão de medidas de proteção à saúde pública na legislação brasileira de propriedade intelectual, com análise dos projetos de lei em andamento sobre o tema e recomendações de alterações legislativas que possam aprimorar a promoção do acesso a tratamento e do direito à saúde no Brasil. Os resultados podem ser consultados em: www.deolhonaspatentes.org.br, “observatório de patentes”, “no Legislativo”.
Q ual a diferença entre licença compulsória e uso governamental? Por meio do “uso governamental de patentes” o Governo tem o direito de usar, ou autorizar terceiros a usar em seu nome e para fins específicos do Governo, qualquer patente por ele concedida, seja de produto ou de processo, mediante comunicação ao inventor e fixação de uma indenização adequada. Note-se que esta indenização não é equivalente aos “royalties” comumente fixados no licenciamento voluntário ou compulsório que tenha objetivos comerciais. Aqui se trata de estabelecer apenas uma compensação ao inventor, a qual estará desvinculada dos aspectos do lucro, sempre presentes nas operações comerciais. A diferença fundamental entre a licença compulsória e o uso governamental é que este último,está restrito a um uso específico do governo, sobretudo não comercial. O Governo, ou seus contratados ou autorizados, não podem vender o produto objeto do uso governamental e assim, estão impedidos de fazer concorrência ao titular da patente ou das patentes.
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